Um beijo de saudade: 10 anos da tragédia na boate Kiss

Era madrugada do dia 27 de janeiro de 2013. Eu andava meio pra baixo, não dormia bem, tinha pesadelos. Mas, naquela madrugada do começo do dia 27, acordei subitamente entre 2 e 3 horas da manhã com uma sensação horrível, um aperto no peito, quase um desespero. Parecia que algo tinha acontecido. E tinha. Mas, só fui saber de tudo nas primeiras horas da manhã. Um dos fatos mais trágicos da História: o incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, a cidade conhecida como “o coração do Rio Grande” por sua localização.

Morei muitos anos em Santa Maria, durante minha primeira graduação, na UFSM, e depois voltei por algum tempo, em 2022. Na primeira “estada”, morava perto da boate Kiss, onde moravam muitos estudantes, a maioria da Universidade Federal ou vestibulandos. A boate Kiss, na noite de 26 para 27 de janeiro de 2013, estava lotada de, principalmente, vestibulandos, foi o que disseram. Era época de férias da faculdade. Mesmo assim, quanta gente se foi cedo demais!

Este fato e todo o seu “entorno” significam muito para mim. Não só por minha ligação com Santa Maria e santa-marienses (mudei-me para lá com 17 anos, foi minha primeira “saída” de Ijuí, minha cidade natal). Não só. Naquela época, e ainda hoje, muita gente de Ijuí e região vai estudar em Santa Maria, inclusive meu pai que se formou na UFSM no fim dos anos 1970. É claro que perdi conhecidos. É claro que, naqueles dias subsequentes, Ijuí, onde eu residia no momento, se tornou um velório a céu aberto. Literalmente. Uma das cenas que nunca vou me esquecer: cortejos atrás de cortejos fúnebres passando à frente da minha casa, toda hora, toda hora e por vários dias seguidos um caixão com uns 50 ou 70 anos de vida incendiados dentro, seguido por uma fila de pessoas, familiares e amigos destroçados para sempre. Tão jovens. Tão cheios de vida.

Por que, por quê? Duvido que alguém possa responder a essa pergunta.

Há coisas que são para acontecer. Até que ponto podemos escolher e mudar nosso destino?

O mais cruel é rever, agora, as imagens da tragédia. Corpos literalmente empilhados no chão. Muita gente morreu nos banheiros, achando que lá era a saída – havia escuridão, muita gente, viva e morta, muita fumaça fatal. Mas me emociona ver o depoimento dos sobreviventes: os que conseguiram sair da Kiss, muitas vezes puxados pelo braço, pelos cabelos, por “anjos” – alguns deles foram mártires; e os familiares, que nunca vão esquecer seus entes queridos perdidos por omissão, ganância, imprudência dos donos da Kiss. Sabemos que os seguranças trancaram a saída, não sabiam o que estava acontecendo. Sabemos que, logo antes, e muito rápido, tudo começou com um acendedor que pôs fogo no teto inflamável do palco. Não podia usar acendedor de luz! Não podia ter aquele teto inflamável! Não podia haver aquela superlotação, com dificuldade para sair da casa noturna, não podiam os seguranças ter barrado a saída no começo por não saberem o que estava acontecendo! Não podia tanta gente morrer queimada, ou por inalação de gás carbônico do fogo, morrer desmaiando, dormindo, lentamente enquanto suas células sanguíneas eram diluídas.

O que se viu, no fim, foi uma montanha de corpos, no chão da Kiss, na rua, nas ambulâncias, nas camas de hospitais em que muitos não resistiram.

Houve heróis, como eu disse: mártires, que morreram para salvar outras vidas; não apenas bombeiros e policiais, gente que preferiu arriscar a vida para salvar quem amava ou quem nem conhecia. Houve quem escapou “por um triz”, houve quem teve quase todo o corpo queimado e sobreviveu, houve quem se foi com o corpo intacto à vista, mas os pulmões inflamados de carbono.

Eu nunca vou esquecer a cena dos cortejos. À frente da minha casa. As buzinas, como lamúrios tristes, insuportáveis aos ouvidos, ao coração. Teve gente que perdeu dezenas de pessoas naquela noite, seus queridos. Teve gente que perdeu o amor da sua vida. Alguém lá imaginaria que não acordaria na manhã seguinte com ressaca e boas histórias?

Agora, a Netflix está passando o seriado Todo Dia a Mesma Noite, baseado em personagens reais da tragédia. Alguns membros da Associação de Pais e Amigos das vítimas querem tirar o seriado, muito realista, até no sotaque gaúcho, no jeito gaúcho, do ar. Confesso que só vi algumas cenas, mas quero assistir ao filme. E não gostaria de que tirassem do ar, por mais doloroso que seja para quem perdeu um pedaço bem grande do coração por um ou mais entes queridos que se foram. Não deixa de ser uma homenagem, um legado. Nos 10 anos da tragédia, a segunda maior da História em boates.

Quase não houve quem não chorou. Repórteres do mundo inteiro que vinham apressadamente àquela cidade universitária, não tão conhecida antes da Kiss. Testemunhas. Sobreviventes. Mães, pais, amigos, estudantes como a maioria das vítimas, pensando que poderiam ter estado naquele lugar, naquela noite, dado seu último suspiro entre corpos sem vida, gritos, fumaça e o breu. Minha melhor amiga contou que, naquela noite, passou em frente à Kiss com outra amiga nossa e pensaram em entrar, mas não gostaram da música. Os músicos mataram 242 pessoas, com os donos da boate Kiss, que recentemente foram liberados. Suas vidas estarão sempre presas a 242 outras vidas perdidas, por um detalhe: um acendedor de luz que não devia ter sido acendido.

Detalhes. Destinos. Improváveis.

Será que eles decidem mesmo nosso destino? Será que um destino pode ser um erro? Alguém poderia ter impedido e não o fez?

Hoje, todos estes corações se empilham no meu peito – das vítimas, dos pais e mães “órfãos”, dos amigos que ficaram. É uma regra universalmente conhecida que pais não devem enterrar seus filhos, mas o contrário. Não está certo. Tão jovens. “Viva rápido, morra jovem”. Eles só queriam se divertir. Não estavam no lugar errado, “enchendo a cara”, como podem dizer os moralistas. Estavam vivendo.

Então, é aqui que eu queria chegar. Precisamos viver o hoje, o só por hoje, um dia de cada vez, porque não sabemos o amanhã. Precisamos amar hoje, tentar hoje, dizer hoje se possível. Quantos “eu te amo” ficaram presos na Kiss. Ela nos deixa um beijo de raiva, talvez ódio, rancor, mas, sobretudo, de saudade. “Kiss”, em inglês, é “beijo”. Queriam beijos e abraços, sorrisos e risadas os que lá estavam, encontraram o beijo da morte, deixaram-nos o beijo da saudade.

Duvido que alguém esquecerá um dia a história da noite maldita da Kiss, que tenha acompanhado o fato. E uma lágrima escorre do meu olho direito quando termino este texto. Era gente como eu. Na cidade que eu amo. Tão jovens. Nem puderam casar, ter filhos, encontrar um grande amor, entrar na faculdade, se formar. Você tem noção de como deve ser grato se teve essas oportunidades, ou ainda as têm?

Deixo um clipe de uma das vítimas, Alana Willers, da minha cidade natal, Ijuí. O que ela canta na música é o que eu desejo a você e a nós. Ela sonhava ser jornalista, correr o mundo. Veio a Morte e a beijou antes.

Ficam as lembranças, da Alana e mais 241 pessoas, almas, vidas inteiras pela frente. Se você está vivo, respirando, não importa sua idade, você tem uma vida inteira pela frente. O que muita gente não tem, não teve. Um beijo de saudade a todas as vítimas e seus queridos. Nunca serão esquecidos. Vocês são heróis – quiseram viver, alguns conseguiram escapar, outros não.

Hoje eu vou “ser simples como a mais bela canção, viva, mas pura de coração, encontrar a liberdade, chorar quando precisar”. Vou chorar só um pouquinho mais…