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terça-feira, setembro 17, 2024
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Cuidado com o que fala: o mundo está cheio de juízes

O mundo andou mudando de uns tempos pra cá. Acho que um bom exemplo para mostrar como o mundo mudou nos últimos anos, é compararmos a fase áurea do Orkut, nos anos 2000, com os posteriores Facebook e Instagram. No Orkut, havia incontáveis grupos que uniam pessoas com gostos, estilos de vida e particularidades semelhantes. Sentiam-se acolhidas. Como li esses dias: se alguém criasse uma comunidade no Orkut “Eu odeio calça saruel!”, não despertaria tubarões ferozes e vigilantes nas redes por parte dos amantes de calça saruel: estes, simplesmente criariam uma comunidade “Eu amo calça saruel”, ou se uniriam a ela, e pronto. Podia-se amar e odiar em paz. Mesmo odiar, veja só.
Agora, talvez depois de 2012 quando o mundo oficialmente acabou conforme o calendário maia, não é mais assim. No Facebook, no Instagram, e principalmente naquele campo minado que é o X, antigo Twitter, a capital mundial do bullying e das hordas de ódio e preconceitos, às vezes estas disfarçadas de libertários, estão sempre atentos os predadores. A quê? A qualquer palavra que possa ser usada contra você, que possa ferir seus egos, sua necessidade de autoafirmação, seus gostos, suas crenças, suas ideologias, seu time de futebol, seu narcicismo patético. Basta uma palavra incauta, e lá estão os juízes que não dormem, que tanto punem, mas em geral não admitem ser julgados, eles podem ser quem quiserem ser.
Clarice Lispector tem uma frase que resolveria bem essa “moda social” (espero que passageira, mas já dura um tempo) de julgar com ferocidade quem não se conhece. Condenar quem não se conhece, e principalmente praticar bullying e todas as temeridades, desde ameaças de processo até exposição nas redes, contra quem não pensa ou não concorda como outros tantos pensam e concordam, contra quem tem opinião própria e peculiar e ousa rejeitar rótulos e premissas sociais.
É certo que às vezes é agressão mesmo, é preconceito, é crime, mas a Constituição Federal permite que expressemos nossa opinião livremente, sem preconceito político, ideológico ou religioso (o que parece que algumas pessoas de toga, não indicadas diretamente pelo povo, não sabem, e fiscalizam). Além da vigilância do povo, dos grupos que se digladiam, temos a vigilância oficial, a censura, típica de países de regime totalitário.
Mas a frase de Clarice. Ela é bem simples: “Deixa-me ser; eu te deixo, então”. Não sei se a pontuação é bem essa, não fui ao Google. Mas seria mais fácil assim. Porque, hoje, basta uma palavra, uma frase, ou bastam apenas olhos que insistem em ver maldade em tudo, que descarregam suas amarguras em todos, que derramam sua belicosidade explosiva e intolerante nas redes. Eles são muitos e estão vigiando, sempre. Então, antes de comentar ou opinar sobre qualquer coisa, mas qualquer coisa mesmo, sei lá, sobre um prato da culinária mineira de que a maioria gosta e você não, pense que há uma boa probabilidade de aqueles que apreciam a iguaria se unirem nos comentários babando de raiva, denunciando-o por, sei lá, preconceito contra os mineiros, desvalorização da culinária brasileira, crime contra a ideologia e a história mineiras, algo assim meio inusitado.
Portanto, cuidado, muito cuidado com suas palavras nas redes sociais, principalmente ali, antro de desventuras, agruras e simulacros do mundo digital – que aquilo não é nem nunca foi “vida real”, é editado. E cuidado com suas palavras no ambiente offline, se é que ainda existem muitos ambientes totalmente offline hoje, mesmo no Brasil. O que você fala ou faz em um átimo pode estar viralizando na Internet. E sua reputação, destruída, e você, mais um caso de ansiedade, depressão e burnout em uma sociedade que devia ser pós-moderna, livre, que relativiza tudo, até demais, mas não o é na prática. Não no Brasil.
Eu, por exemplo, vivo sendo xingada. Não que sempre diga as coisas certas ou afáveis, ao contrário. Tenho opiniões fortes. Mas percebo que devo ser muito, mas muito mais cuidadosa. Ademais, o que aqui escrevi não vou apagar, porque acho que tem de ser dito. “Porque há o direito ao grito. Então eu grito” (mais uma vez Clarice, em A hora da estrela). Grito no sentido de extenuar, não de brigar, estou farta tanto de brigas como Fernando Pessoa estava de semideuses.
Outro ponto: conversar civilizadamente. Que hábito rico este que estamos deixando de lado, junto com a educação e o respeito aos mais velhos, aos pais, a quem discorda, a quem é respeitável.
E, se porventura alguma palavra aqui me incriminar, eu já a disse e está dito. Não se pode mais não gostar em paz, não concordar em paz, tudo é ofensa. É que as pessoas, muitas delas, estão frustradas. Precisam de dardos de amargura para alvos. O povo brasileiro anda atolado em impostos que só aumentam, uma inflação que está indo até o pico do monte Everest, corrupção endêmica (agora ela é relativa). O povo brasileiro está dividido em grupos que se odeiam ou não se suportam. É assim que um “bom governo mau” gosta, um povo desunido, enfraquecido, que não possa dar as mãos para exercer seu direito democrático de protestar, fiscalizar e cobrar os políticos pagos com dinheiro público que deixam a desejar.
Fique lutando entre si a plebe, enquanto, lá em cima, no Olimpo antigo das desigualdades e infâmias verde e amarelas, os mandantes fazem tudo que lhes interessa, e não ao povo, às pressas, sem transparência. Ai de quem questionar. São eles juízes, em sua grande maioria, e juízes literalmente, e parecem querer vingança ou algo assim.
Assim, precisaremos criar cadernos ou arquivos com palavras, expressões e ideias que podem ser ditas. E como nos comportar diante do ódio e incompreensão alheias, essas ervas daninhas do nosso país e do mundo em geral. Precisaremos? Espero que não. Mas não vejo essa ideia muito distante da realidade em que vivemos. É assustador. Estamos em um novo tempo de Inquisição, e eles são muitos, por toda parte, ferrenhos e inexoráveis. Então, cuidado com o que fala. O mundo está cheio de juízes sem dó. E sem lastro para julgar. Afinal, quem de nós tem lastro para julgar? “Na medida em que julgardes, sereis julgados”, disse Jesus Cristo. Ele, que poderia, mas não julgou. Deixou-se julgar, até ser pregado em uma cruz. “Tu o dizes”, disse Ele. “Perdoai-lhes, eles não sabem o que fazem.”
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