A morte é a grande questão da Filosofia. Ao menos para grande parte dos filósofos e admiradores desse campo das Ciências Humanas. Há incontáveis livros sobre a morte, abordando-a direta ou indiretamente. Destaco A negação da morte, o clássico de Ernest Becker. No cinema, que legado nos deixaram Robin Williams: Amor além da vida, em que foi o triste e obstinado protagonista; e Stephen King, com À espera de um milagre, nos perturba e encanta. A lista de conteúdos que marcantes tratam da morte e do sentido da existência (ou da falta dele), para além da Filosofia, é uma lista interminável. Mas não quero aqui tratar da morte em si. Quero falar sobre O Grande Vazio Dos Que Se Foram. Deixado esse vazio nos que aqui ficaram.
Eu sei que a dor da perda para a morte, em especial de nossos queridos, de irmãos de sangue ou não, amigos, pais, filhos, ídolos ou pessoas que admiramos, vai se amenizar. O tempo faz com o que o ser humano se acostume, mesmo que mal, mesmo que com sequelas. Nos adaptamos à ideia da morte de nossos amados e à ideia da nossa própria morte, que tentamos burlar com nossas tarefas comezinhas do cotidiano. Ou mesmo com grandes feitos que nos façam sentir vivos e pensar que nossa vida valeu a pena. Que nos permitam dar orgulho àqueles que estão vivos e aos que, das estrelas, nos olham. Mas onde estarão eles, afinal? Podem nos ouvir, nos ver? Nos guardarão como anjos invisíveis? Tornaram-se anjos?
“É da vida”, você dirá. E é. A coisa mais certa na vida é a morte. Mas nunca estamos preparados de verdade para vê-la segar, como a um feixe frágil de trigo, uma pessoa amada ou importante para nós.
O Grande Vazio Daqueles Que Se Foram.
Eric Clapton escreveu uma das mais belas e memoráveis músicas das galáxias: “Tears In Heaven” (“Lágrimas no Céu”). O que dizem é que foi em um momento de extrema dor, quando seu filho pequeno caiu da sacada e lhe deixou A Grande Dor Daqueles Que Se Foram. Daqueles que amamos intensamente. Mesmo que seja de um jeito meio errado, um pouco egoísta esse amor, mas “há mil formas de amar” como já dizia o mestre Machado de Assis. Mas eu falava de Clapton e seu pranto musical. Nessa triste e rica melodia, em que o gênio das cordas parece falar diretamente com sua grande perda, ou talvez com Deus, ele pergunta: “Será que você saberia meu nome se eu o visse no Céu? Será que as coisas seriam iguais, se eu o visse no Céu?”. Depois, declara que “precisa ser forte e seguir em frente, porque sabe que não pertence àquele lugar, ao Céu”. Nesse caso, Céu pode significar Paraíso, mas eu prefiro chamar de Céu.
Pense agora nas suas grandes perdas e no Grande Vazio Daqueles Que Se Foram. “Ah, é passado.” Passado só passa dentro da gente. Pessoas só desaparecem, de fato, do lado de dentro. Não quando somem de nossos olhos, impossibilitando nosso toque, nosso abraço, nossos beijos. Alguns seres amados nunca esmaecem dentro da gente.
Portanto, tenha você a crença que tiver: a conformidade cinzenta no Nada durante e após a vida, que seria um ínterim sem propósito senão a própria satisfação e a de quem se quiser agradar; ou tenha você a fé dos que rezam todos os dias pela alma de seus entes que se foram, dos que rezam pelos vivos, por suas próprias vidas. Não importa tanto. Todos nós não sabemos bem como será o Além. Há inúmeras Experiências de Quase Morte (EQM), e todas elas são diferentes, embora guardem semelhanças entre si. O que dizem é que não acaba aqui, somos mais que um corpo que expira o suspiro final.
Mas como saberemos? Se a despedida foi para sempre. Se nos reconheceremos, nós e os que se foram, se teremos, ambos, memórias uns dos outros em outro plano. Como serão nossas aparências? Para cristãos e muçulmanos, paira a ideia de “céu” e “inferno”. É lancinante imaginar quem amamos padecendo, no não tempo da Eternidade, no breu dantesco infernal. Ou não saber onde alguém que se foi está. “Onde está você agora além que aqui, dentro de mim?”, cantou Renato Russo em sua bela e triste dedicatória à perda do grande amor da sua vida.
Uma grande perda pode ser um animal, um pet ou um humano. Sim, pode ser um pet. Eles sabem amar melhor do que muitos humanos, eu diria a maioria. São, para mim, como sempre foram, anjos na terra. Há quem sinta prazer em maltratar anjos…
Então, pego-me agora em uma sexta-feira de manhã quente de sol, o mesmo barulho distante das máquinas, da vida que não pode parar, notícias ruins já me chegaram hoje, porque têm sido muitas para todos nós. Estou sentindo. É fundo, macio, inalcançável, um lugar do peito que se espraia como garras que vão abrindo um buraco cada vez maior. Não é sempre que tenho essa dor, que o buraco se faz presente, ou seria insuportável. Mas devo respeitá-lo, e me lembrar de reverenciar, ainda que em silêncio, meus amados que se foram, sempre cedo demais, sempre de repente. Acordei, pois, com saudades da minha infância e adolescência (que são a perda do que já fomos, sonhos que tivemos). O vazio da ausência da presença de meus avós, de amigos de infância que se foram. Podem me ver, podem me ouvir? Nos encontraremos, e nos reconheceremos um dia?
Não, nunca nos acostumamos de verdade. De repente, sempre de repente, O Grande Vazio lhe dá um toque no ombro, cutuca seu peito, lhe traz lembranças, lhe rouba uma lágrima no canto esquerdo do olho. Os que se foram daqui têm até um dia: 2 de novembro. Muitos só se lembram deles nessa data, vão ao cemitério levar-lhes flores, pensam neles, suspiram. Só que levar flores ao cemitério, a despeito de uma rica homenagem, não serve de grande conforto E não apaga o remorso por não termos amado ou valorizado o suficiente em vida o ente que se foi. E mais: ninguém irá substituir nossos amados que se foram, se você os amou e ainda ama de verdade. O amor é maior que a morte.
Ficamos então aqui com o que resta: portarretratos, objetos deixados onde vêmos rostos e cenas, resquícios nas redes sociais, um sorriso aqui, um amargor ali. Arrependimentos, amarguras e sentimentos de orgulho pela pessoa amada que se foi duelam em nosso Coliseu particular. Ao menos, eu o tive, eu a tive.
A vida, seja dez ou cem anos, meus amigos, é breve. E O Grande Vazio Daqueles Que Se Foram, inevitável para quem tem sentimentos, está sempre aqui de prontidão.
Lembre-se de que aquelas pessoas amadas (amor pode se confundir com ódio, mas não com indiferença, nunca) que foram perdidas para a morte. Como todos nós seremos um dia. Elas não morreram dentro de você. Você pode senti-las, e sentir o buraco-negro da falta delas. O exemplo e os ensinamentos que legaram. As brigas, ah, tudo meio que fica para trás depois que resta a saudade. Olha lá, uma cotovia. Ele gostava de conversar com as cotovias. Uma imagem do Cristo Redentor, nós lá em cima. Como fomos felizes naquela noite em que o Cristo pareceu nos prometer que seria para sempre. Ah, o que pode ser a vida mais que aquilo que sentimos? O essencial é invisível aos olhos, disse O Pequeno Príncipe. Não que todas as coisas importantes sejam invisíveis.
O Grande Vazio Daqueles Que Se Foram.
Você saberia meu nome, se nos encontrássemos? As coisas seriam iguais entre nós, se nos víssemos outra vez? Quantas vezes seriam? Você ainda guardaria meus segredos? Sorriria para mim, me abraçaria, sentiria meu corpo tocando o seu? Faria aquelas reclamaçõezinhas de sempre, que agora me abandonaram? Faríamos as pazes? Eu não tenho essas respostas. E me é bastante triste, gosto de respostas.
Então vou, um dia de cada vez, tentando fazer o que aqueles amados que se foram gostariam que eu fizesse: viver. Viver é raro, a maioria das pessoas apenas existe, diria Oscar Wilde. Rumo ao Grande Talvez de Rabelais. Ao infinito, a algum ponto de existência onde, quem sabe, os que se foram se reúnem para jogar cartas, e contar não sobre si mesmos na época da terra, mas sobre aqueles que amam e amarão para sempre. E dizer toda vez que mal podem esperar para o reencontro. E se perguntam, como nós que estamos aqui, no Pálido Ponto Azul de Carl Sagan: “Saberão meu nome? Nos reconheceremos? Faremos as pazes?”.